Tornaram-se comuns as comparações históricas entre a época atual e a década de 1930, tanto através de artigos da mídia tradicional quanto por meio de opiniões de intelectuais como Alain Badiou. O grande ato de Charlottesville na Virgínia acendeu o alerta sobre o quanto a alt-right comunga não só de um modus operandi típico do nazismo (violência, extremismo e ódio às minorias) como também de sua ideologia, aproximando-se em muitos pontos de um fascismo tout court. Na verdade, a passeata já mostrou que grupos ligados à nefasta Ku Klux Klan, bem como neo-nazis, estão muito confortáveis fora de suas tocas.
Se é incorreto estabelecer uma relação direta e equivalente entre a conjuntura de 1930 e a de 2017, talvez valha a pena ao menos refletir sobre os embates da primeira metade do século XX e o que disseram alguns de seus principais atores políticos.
Na conjuntura específica da crise do liberalismo do período entre guerras, acirrada após a crise de 1929, Leon Trotsky redigiu um documento intitulado “O marxismo e nossa época”, em fevereiro de 1939 e, portanto, às vésperas da eclosão da II Guerra Mundial. Nele, o revolucionário chama a atenção para o caráter anti-comunista do fascismo:
Atualmente há dois sistemas que rivalizam no mundo para salvar o capital historicamente condenado à morte: são o fascismo e o New Deal (novo pacto). O fascismo baseia seu programa na dissolução das organizações operárias, na destruição das reformas sociais e no aniquilamento completo dos direitos democráticos, com o objetivo de impedir o renascimento da luta de classes do proletariado. O Estado Fascista legaliza oficialmente a degradação dos trabalhadores e a pauperização das classes médias em nome da salvação da “nação” e da “raça”, nomes presunçosos sob os quais se oculta o capitalismo em decadência.
Não há tergiversações por parte de Trotsky. O fascismo é um inimigo do comunismo a serviço do capitalismo em crise. Essa avaliação não surge em 1939, já havia sido exposta no contexto da batalha entre o fascismo e o comunismo dentro da Alemanha. Em um texto chamado “E agora? a revolução alemã e a burocracia stalinista”, Trotsky diz:
O fascismo não é simplesmente um sistema de repressão, de atos de força e de terror policial. O fascismo é um sistema de Estado particular, baseado no extermínio de todos os elementos da democracia proletária na sociedade burguesa. A tarefa do fascismo não consiste somente em destruir a vanguarda proletária, mas também em manter toda a classe num estado de fragmentação forçada. Para isto, a exterminação física da camada operária mais revolucionária é insuficiente. É preciso destruir todos os pontos de apoio do proletariado e exterminar os resultados do trabalho de três quartos de século da social-democracia e dos sindicatos. Porque neste trabalho também se apoia, em última instância, o Partido Comunista.
Muito além da ideia de que o comunismo e o nazismo seriam concepções “irmãs”, propagada pela nova direita brasileira, Trotsky registra aqui a batalha brutal que se deu nas ruas da Europa, e como o fascismo buscou a todo custo a aniquilação das representações políticas dos trabalhadores e suas instituições.
O que explica este objetivo de aniquilação total é o momento de crise da dominação burguesa pelo qual passava a Alemanha, no qual os partidos tradicionais da democracia parlamentar não mais conseguiam conter as massas e assegurar a dominação do capital. Nesse momento de tensão e de acirramento dos antagonismos, a burguesia lançou mão de todo um setor de “desmoralizados”, de humilhados e ressentidos de uma pequena burguesia arruinada. De acordo com Trotsky, “todas essas inumeráveis existências humanas que o próprio capital financeiro levou ao desespero e à fúria.”
Cabe perguntar se não haveria nesta reanimação de movimentos conservadores e extremistas no mundo inteiro hoje uma relação com o descenso da onda de mobilizações que percorreu o globo durante a década, tendo os Estados Unidos sido parte desse fluxo de lutas com episódios como o Occupy Wall Street e a campanha de Bernie Sanders. Quando Trump se coloca em cima do muro diante dos acirramentos atuais o que parece é que se dá carta branca para que os neonazistas avancem e impeçam a cristalização de movimentos como o Black Lives Matter, que estão há tempos pressionando pela remoção de estátuas que homenageiam generais confederados, como foi o caso em Charlottesville, que recebeu a onda de indignação da alt-right diante da possível remoção da estátua do confederado Robert E. Lee.
Sim, não se trata aqui de, como buscaram fazer os fascistas dos anos 1930, desmontar os sindicatos e representações da classe trabalhadora, que já foram na maioria dos casos cooptados pelas burocracias a muito tempo, tampouco os partidos operários e comunistas, que hoje são, quando muito, apenas pequenas agremiações de média ou baixa influência. Talvez o momento envolva também um ataque aos movimentos negros, feministas, lgbt’s, horizontalistas, autonomistas e socialistas em geral; envolva fazer recuar os discursos de esquerda que adquiriram ampla penetração social nos últimos anos. Mas a missão de esmagamento desses movimentos sociais, talvez, siga a mesma lógica. Voltando a Trotsky:
A vitória do fascismo coroa-se quando o capital financeiro subordina, direta e imediatamente, todos os órgãos e instituições de domínio, de direção e de educação; o aparelho do Estado e o exército, as prefeituras, as universidades, as escolas, a imprensa, os sindicatos, as cooperativas. A fascistização do Estado significa não apenas “mussolinizar” as formas e os processos de direção — neste domínio as mudanças desempenham, no final das contas, um papel secundário — mas, antes de tudo e sobretudo, destruir as organizações operárias, reduzir o proletariado a um estado amorfo, criar um sistema de organismos que penetre profundamente nas massas e esteja destinado a impedir a cristalização independente do proletariado. É precisamente nisto que consiste a essência do regime fascista.
O neoliberalismo, que nos últimos anos alastrou-se e construiu hegemonia sob a retórica de que o mercado está mais apto do que o Estado para gerir as relações sociais, pode ter servido como preparação para o terreno em que nos encontramos. Destruindo todos os resquícios de solidariedade e amparo social que haviam nos insuficientes modelos de Estado de bem-estar, restaria agora para a nova direita reacionária a missão de conter os movimentos que nos últimos anos questionaram a ordem governada pelo mercado financeiro, o 1% denunciado pelo movimento Occupy.
O que devemos ter em mente é a necessidade de construir organismos de solidariedade efetiva entre os explorados e oprimidos, que sirva primeiramente como um mecanismo capaz de derrotar a alt-right estadunidense e este bloco formado por liberais de diversas matizes e neoconservadores no mundo todo. Este bloco já é, na prática, uma corrente de opinião mundial. Desde já conectar as lutas em diversos campos com o combate a denúncia do sistema financeiro.
Em suma, o momento é de seguir enfrentando o domínio do Capital em sua forma presente, que pode se expressar politicamente tanto através de contornos fascistas ou nas matizes mais tolerantes e moderadas de um Macron ou uma Clinton, mas fielmente comprometidas a prosseguir na catástrofe do progresso e da democracia liberal.